Eu que nunca conheci os homens - Resenha #07
Uma distopia em forma de relato, eu que nunca conheci os homens é uma obra capaz de incitar questionamentos vitais sobre a experiência humana
Quarenta mulheres estão presas em uma jaula coletiva em um porão, sob a vigilância de guardas que permanecem sempre em silêncio.
Publicado originalmente em francês como Moi qui n'ai pas connu les hommes, Eu que nunca conheci os homens é uma ficção científica pós-apocalíptica publicada em 1995, escrita por Jacqueline Harpman e traduzido por Diego Brando. Foi oficialmente adicionado a minha lista de clássicos distópicos que todo mundo deve ler uma vez na vida. (Junto com 1984, Fahrenheit 451, A revolução dos bichos, O conto da aia)
Diferente, emocionante e misterioso. Esse livro é o que eu considero uma experiência literária. Uma premissa única, contada de uma só vez através do relato contínuo de uma narradora sem nome, que é a pessoa mais nova da jaula. “pequena” é os seus olhos no mundo gradeado, monitorado e fiscalizado em que você é lançado no começo deste livro.
Esse livro, além de entrar para minha lista de “livros com frases finais marcantes”, me deu um leve pânico sobre a maneira que vejo o mundo. Como você vivenciaria o mundo, se não o conhecesse? Como seria o seu contato com pessoas, se você não tivesse memórias de seu afeto? Como seria sua vida, se você não conhecesse os homens?
PS: Pra mim, esse é o tipo de livro que você deve começar sem saber muito sobre, e se você nunca leu, por favor, leia a seção abaixo depois disso. <3
Catarse.
Particularmente, pensei que esse livro seria o tipo clássico de história. Uma montanha russa de emoções, um aumento constante de tensão, culminando em um clímax, com uma resolução de conflitos, remendando relacionamentos e arrumando todo o enredo com um lacinho no topo.
Nesse livro, porém, não existe clímax, não existe montanha russa de emoções, a não ser que você rapidamente troque a escala para uma em miniatura. Qualquer mínima animação dos espíritos, seja boa ou ruim, é rapidamente seguida por certa calmaria. Não existem ansiedades, conflitos catastróficos nem grandeza cósmica (um termo que eu felizmente descobri no livro The three lives of Cate Kay).
A nossa narradora, com a tranquilidade que somente anos de experiências confusas e sem respostas podem trazer, relata todos os acontecimentos que tem em memória. Derramando seu cérebro nas páginas, o mais emocionante deste livro é saber que nossa protagonista, a qual conheci tão intimamente que me incluí como uma de suas 39 companheiras, passa toda a sua vida procurando. Caçando esse clímax, essa grande resposta.
— Mas então os homens eram muito importantes?
Ela balançou a cabeça.
— Os homens, pequena, significam estarmos vivas. O que é que nós somos, sem futuro, sem descendência? Os últimos elos de uma corrente quebrada.
— Mas então a vida dava tanto prazer assim?
E como todas as grandes respostas da vida (quem somos? por que estamos aqui? o que devemos fazer?) a nossa protagonista nunca recebe a resposta. Não existe nada mais dolorosamente humano, e não posso fazer nada além de considerar essa pacata realidade em si um grande clímax. Um grande acontecimento. Todo e qualquer momento desta obra é curioso de maneira quase perturbadora. Consegue ser, ao mesmo tempo, apático e emocionante. Extraterrestre e humanizado. Um conflito de definições que ocorrem pois ainda não possuo vocabulário ou vivência o suficiente para expressar em palavras.
Isso me leva a crer que as pessoas não eram sedentas por aprender e que era preciso ficar se desculpando por querer transmitir seus conhecimentos.
Contudo, eu ainda tenho muitas perguntas sobre essa história, quase todas sem resposta
O que fez a nossa jaula ser a única?
Essa pergunta me pareceu muito simples quando eu estava lendo. Obviamente, a “pequena” ficou horas encarando o guarda, logo, isso o desestabilizou o suficiente para deixar a jaula aberta. Mas agora, alguns dias depois de ler esse livro, acho que não. Pensei que seria também devido ao fato de que era a única jaula com uma criança.
O vigia largou seu molho de chaves, abandonando na fechadura, e se virou para os outros. Eles se entreolharam por um instante e então, num mesmo movimento, tomaram fôlego e correram em direção à porta principal, empurraram suas folhas duplas, as deixando completamente abertas, coisa que nunca tinha acontecido, e saíram.
Eles saíram. Pela primeira vez desde o início do confinamento, havia somente mulheres no porão.
Cheguei então à conclusão (muito provavelmente errada) de que é somente o acaso. Depois de vasculhar meu cérebro por qualquer explicação, infelizmente, penso que talvez seja uma questão de probabilidade. E que a probabilidade não era nula. De todas as jaulas, pensando que a sirene soou ao mesmo tempo, haveria, logicamente, pelo menos uma que teria o momento de abertura da jaula no mesmo momento que essa sirene soou.
Se você faz algo que já é proibido, a ação é que é visada. Se você faz algo que não foi proibido e alguém intervém, não é a atividade que chama a atenção, é você mesma.
Embora seja levemente suspeito o fato de que era a única jaula com uma criança, correlação nem sempre implica causalidade. Eu acho que existe algum tipo de conexão entre os dois fatos, mas ainda não consegui descobri-la.
Enquanto as folhas cobertas pela minha escrita permanecerem em cima desta mesa, eu poderei me tornar uma realidade em alguma mente. Então tudo desaparecerá, os sóis se apagarão e eu desaparecerei, como o universo.
Sobre a escrita.
Não me considero uma pessoa com muito conhecimento sobre análise literária. Não tenho treinamento tradicional nessa área, além das aulas semanais de literatura I e II na época da escola. A escrita do livro, ainda assim, me impressionou bastante. Me fez explorar caminhos na minha mente, pois a maneira como a autora escreve sobre alguém que cresceu de maneira tão isolada, a nossa protagonista, me fez analisar até se eu aprecio os meus batimentos cardíacos da maneira devida.
— E para que serve saber isso, já que não pode acontecer com você?
— Para saber — eu disse, furiosa, e assim descobri o significado da minha determinação.
Com os olhos de uma criança, uma jovem, e depois de uma mulher, essa história me fez olhar com outros olhos o mundo em que vivo, momentos do cotidiano que antes passavam batido, e conhecimentos que antes eu considerava irrelevantes. Como a narradora, em toda sua animação de criança, conseguiu descrever a sede por conhecimento que eu sempre senti, que muitos sentem.
— Saber serve pra saber! Às vezes a gente pode fazer alguma coisa com o que sabe, mas isso não é o mais importante. Eu quero saber tudo o que existe pra saber, por nada, por prazer, e agora eu exijo que você me ensine tudo o que sabe, mesmo que eu nunca vá usar pra nada.
Catarse, ou a falta dela. (Frase final/terminal)
A frase final deste livro é o que eu considero um momento de suspiro. Tão simples, mas tão efetiva em causar aquele sentimento de meu deus. O que eu acabei de ler é de outro mundo (a piada tava na minha frente, perdão). É, talvez, o que eu posso chamar de uma grandiosíssima quebra de expectativa. Por mais que a história tenha sido narrada de modo que esse fim era visível, ainda assim, a frase terminal é perfeita, causando um flashback de toda a experiência de leitura vivida.
É estranho que eu morra por conta do útero, eu, que nunca menstruei e que nunca conheci os homens.
Este livro, tão perfeitamente emocionante, me fez lamentar o fato de Jacqueline Harpman não ter mais nenhuma obra (que eu saiba) publicada no Brazil. Estarei sim, procurando traduções das obras dela em inglês e espanhol, estou animada para descobrir outras histórias com sua voz. Essa obra é, para mim, uma recomendação coringa para causar uma jornada emocionante dentro da cabeça de alguma amiga que gosta de psicologia, filmes de sci-fi, ou de ler histórias diferentes do comum.
Frases que valem a pena lembrar
eu nunca tinha me contado uma história antes, nem sabia que dava para fazer algo assim, e fiquei completamente envolvida, maravilhada tanto por aquela nova atividade quanto pela própria história.
Eu estava o tempo inteiro mal-humorada, mas não sabia disso, pois não conhecia os termos que definem os estados de espírito.
— Mas será que falar vai nos ensinar alguma coisa sobre o que nós estamos fazendo aqui? Você não sabe mais do que eu ou qualquer uma de nós.
— Não, mas eu vou saber o que você acha, você vai saber o que eu acho, de repente isso nos dá alguma ideia nova, e aí nós vamos sentir que estamos nos comportando como seres humanos, e não como autômatos repetitivos.
E ali, sacudida pelos soluços, me vi encurralada, me dando conta, tarde demais, excessivamente tarde, que eu também tinha amado, que eu era capaz de sofrer e que, em suma, eu era humana.
Adorei a resenha.
Relato bem detalhado e incentivador. Adorei❤️